Trecho de Carnaval Carioca - Mário de Andrade

Mário de Andrade, poeta da primeira geraçao do modernismo brasileiro

Poema de Mário de Andrade



A fornalha estrala em mascarados cheiros silvos
Bulhas de cor bruta aos trambolhões,
Cetins sedas cassas fundidas no riso febril...
Brasil!
Rio de Janeiro!
Queimadas de verão!
E ao longe, do tição do Corcovado a fumarada das nuvens pelo céu.

Carnaval...
Minha frieza de paulista,
Policiamentos interiores,
Temores da exceção...
E o excesso goitacá pardo selvagem!
Cafrarias desabaladas
Ruínas de linhas puras
Um negro dois brancos três mulatos, despudores...
O animal desembesta aos botes pinotes desengonços
No heroísmo do prazer sem máscaras supremo natural.

Tremi de frio nos meus preconceitos eruditos
Ante o sangue ardendo povo chiba frêmito e clangor.
Risadas e danças
Batuques maxixes
Jeitos de micos piricicas
Ditos pesados, graça popular...
Ris? Todos riem...

O indivíduo é caixeiro de armarinho na Gamboa.
Cama de ferro curta por demais,
Espelho mentiroso de mascate
E no cabide roupas lustrosas demais...
Dança uma joça repinicada
De gestos pinchando ridículos no ar.
Corpo gordo que nem de matrona
Rebolando embolado nas saias baianas,
Braço de fora, pelanca pulando no espaço
E no decote cabeludo cascavéis saracoteando
Desritmando a forçura dos músculos viris.
Fantasiou-se de baiana,
                                                  A Baía é boa terra...
                                                  Está feliz.

Entoa à toa a toada safada
E no escuro da boca banguela
O halo dos beiços de carmim.
Vibrações em redor.
Pinhos gargalhadas assobios
Mulatos remelexos e boduns.
Palmas. Pandeiros. - Aí, baiana!
                                                  Baiana do coração!
Serpentinas que saltam dos autos em monóculos curiosos,
Este cachorro espavorido,
Guarda-civil indiferente.
Fiscalizemos as piruetas...
Então só eu que vi?
Risos. Tudo aplaude. Tudo canta:
          - Aí, baiana faceira,
          Baiana do coração!
Ele tinha nos beiços sonoros beijando se rindo
Uma ruga esquecida uma ruga longínqua
Como esgar duma angústia indistinta ignorante...
Só eu pude gozá-la.
E talvez a cama de ferro curta por demais...

Carnaval...
A baiana se foi na religião do Carnaval
Como quem cumpre uma promessa.
Todos cumprem suas promessas de gozar.
Explodem roncos roucos trilos tchique-tchiques
E o falsete enguia esguia rabejando pelo aquário multicor.
Cordões de machos mulherizados,
Ingleses evadidos da pruderie,
Argentinos mascarando a admiração com desdéns superiores
Degringolando em lenga-lenga de milonga,
Polacas de indiscutível índole nagô,
Yankees fantasiados de norte-americanos...
Coiozada emproada se aturdindo turtuveando
Entre os carnavalescos de verdade
Que pererecam pararacas em derengues meneios cantigas, chinfrim de gozar!

Tem outra raça ainda.
O mocinho vai fuçando o manacá naturalizado espanhola.
Ela se deixa bolinar na multidão compacta.
                         Por engano.
Quando aproximam dos polícias
Como ela é pura conversando com as amigas!
Pobre do moço olhando as fantasias dos outros,
Pobre do solitário com chapéu caicai nos olhos!
Naturalmente é um poeta...

Eu mesmo... Eu mesmo, Carnaval...
Eu te levava uns olhos novos
Pra serem lapidados em mil sensações bonitas,
Meus lábios murmurejando de comoção assustada
Haviam de ter puríssimo destino...
É que sou poeta
E na banalidade larga dos meus cantos
Fundir-se-ão de mãos dadas alegrias e tristuras, bens e males,
Todas as coisas finitas
Em rondas aladas sobrenaturais.

Ânsia heroica dos meus sentidos
Pra acordar o segredo de seres e coisas.
Eu colho nos dedos as rédeas que param o infrene das vidas,
Sou o compasso que une todos os compassos,
E com a magia dos meus versos
Criando ambientes longínquos e piedosos
Transporto em realidades superiores
A mesquinhez da realidade.
Eu bailo em poemas, multicolorido!
Palhaço! Mago! Louco! Juiz! Criancinha!
Sou dançarino brasileiro!
Sou dançarino e danço! E nos meus passos conscientes
Glorifico a verdade das coisas existentes
Fixando os ecos e as miragens.
Sou um tupi tangendo um alaúde
E a trágica mixórdia dos fenômenos terrestres
Eu celestizo em euritmias soberanas,
Ôh encantamento da Poesia imortal!...
Onde que andou minha missão de poeta, Carnaval?
Puxou-me a ventania,
Segundo círculo do Inferno,
Rajadas de confetes
Hálitos diabólicos perfumes
Fazendo relar pelo corpo da gente
Semíramis Marília Helena Cleópatra e Francesca.
Milhares de Julietas!
Domitilas fantasiadas de cow-girls,
Isoldas de pijama bem francesas,
Alzacianas portuguesas holandesas...
          Geografia!
Êh liberdade! Pagodeira grossa! É bom gozar!
Levou a breca o destino do poeta,
Barreei meus lábios com o carmim doce dos dela...

Teu amor provinha de desejos irritados,
Irritados como os morros do nascente nas primeiras horas da manhã.
Teu beijo era como o grito da araponga,
Me alumiava atordoava com o golpe estridente viril.
Teu abraço era como a noite dormida na rede
Que traz o dia de membros moles mornos de torpor.
Te possuindo eu me alimentei com o mel dos guarupus,
Mel ácido, mel que não sacia,
Mel que dá sede quando as fontes estão muitas léguas além,
Quando a soalheira é mais desoladora
E o corpo mais exausto.

Carnaval...
Porém nunca tive intenção de escrever sobre ti...
Morreu o poeta e um gramofone escravo
Arranhou discos de sensações...





Fonte: "Poesia completa", Editora Itatiaia, 1987.
Originalmente publicado em: "Clã do jabuti", 1927.
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