Manhã


Poema de Mário de Andrade



O jardim estava em rosa ao pé do sol
E o ventinho de mato que viera do Jaraguá,
Deixando por tudo uma presença de água,
Banzava gozado na manhã praciana.

Tudo limpo que nem toada de flauta.
A gente se quisesse beijava o chão sem formiga,
A boca roçava mesmo na paisagem de cristal.

Um silêncio nortista, muito claro!
As sombras se agarravam no folhedo das árvores
Talqualmente preguiças pesadas.
O sol sentava nos bancos tomando banho-de-luz.

Tinha um sossego tão antigo no jardim,
Uma fresca tão de mão lavada com limão,
Era tão marupiara e descansante
Que desejei... Mulher não desejei não, desejei...
Se eu tivesse a meu lado ali passeando
Suponhamos Lenine, Carlos Prestes, Gandhi, um desses!...

Na doçura da manhã quase acabada
Eu lhes falava cordialmente: - Se abanquem um bocadinho.
E havia de contar pra eles os nomes dos nossos peixes,
Ou descrevia Ouro Preto, a entrada de Vitória, Marajó,
Coisa assim, que pusesse um disfarce de festa
No pensamento dessas tempestades de homens.




Fonte: "Poesia completa", Editora Itatiaia, 1987.
Originalmente publicado em: "Remate de males", 1930.