Duas vozes

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Poema de Gilka Machado



Despertei hoje menina,
brinquei com lindas lembranças,
mas depois quanta saudade!
o psiu psiu de uma cigarra
mostrou-me o rosto da infância...
- foi visita da velhice.

Do amor passada a loucura,
clamo, em triunfo, aos teus ouvidos:
- nada conservo de ti!
De mim mesma volvo à posse,
mas meu olhar se apavora
ante o que resta de mim.

Resignada borralheira,
triste destino tiveram
os teus dedos de carícia!
Em teu inútil esforço
de matar alheia fome
é a ti que o tempo devora.

Muito pouco me deixaste,
um quase nada de vida
para tamanha crueldade.
Mas o que de mim carregas,
se a mim não soube prender-te,
das outras te há de afastar.

Vejo o passado passando,
qual um rio que voltasse
carregado de destroços...
e que anseio de agarrar-me
ao vestido de esperança
da minha imagem de outrora!

Tua lembrança é hoje apenas
um sepulcro sem cadáver:
que vácuo imenso ficou!
Tenho carne e alma cavadas
como o leito onde contemplo
o vazio de teu corpo.

Os galos gritam lá fora
os versos que silencio...
ah! pudesse estrangulá-los,
calar naquelas gargantas
o apelo da, minha insônia,
o canto da minha angústia.

Não me deixes ! - eu rogava,
apertando-te em meus braços,
sentindo-te sempre ausente.
E agora que nem te vejo
como dói tua presença!
porque não te vais agora?!

A vida, velha usurária,
só nos concede migalha
do muito que lhe pedimos.
Ó minha mão de humildade,
tão pouco solicitaste
que apenas te coube o sonho!




Fonte: "Velha poesia", Tipografia Baptista de Souza, 1965.
Originalmente publicado em: "Velha poesia", Tipografia Baptista de Souza, 1965.
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