Chiquinha

Imagem da poeta Jacinta Passos

Poema de Jacinta Passos



Chiquinha
tão frágil,
magrinha.
Teu corpo miúdo
o tempo secou,
as formas redondas
o tempo gastou.
Pareces criança.
Chiquinha,
magrinha,
que doce esperança
te faz resistir?
Que doce esperança
mais forte que tudo,
mais forte que o tempo,
cansaço,
pobreza,
mais forte que o medo,
doença,
tristeza,
que doce esperança
mais forte que tudo,
à vida traz preso
teu corpo miúdo?

Chiquinha
Chiquinha
não lutas sozinha.
A doce esperança
te vem como herança
e a luta também,
do fundo dos séculos,
Chiquinha, te vem.
Teu corpo cansado
lutou no Egito,
as mãos, mãos escravas,
abanaram leques
e teu corpo nu,
teus seios morenos
e teus pés pequenos
dançaram lascivos,
ligeiros, airosos,
deleitando o tédio
de reis ociosos.
Chiquinha,
teu corpo,
teu corpo cansado,
foi corpo explorado
na Mesopotâmia,
na Pérsia e Turquia
- haréns de sultão -
foi pária na Índia,
na China e Japão.

Teu corpo explorado
foi mercadoria,
espada e cavalo
e vinho, foi orgia
na Arábia lendária,
de ardência e magia.
Já foi, na Judeia,
corpo apedrejado.
Na Grécia, teu corpo
vestido de túnica,
foi Vênus olímpica,
foi deusa na Arte,
foi serva na vida.
No Império Romano,
teu corpo serviu
a César, guerreiros,
fidalgos patrícios,
à flor da nobreza,
miséria e grandeza,
foi senhora-escrava,
matrona impoluta,
dama e prostituta.

Chiquinha
Chiquinha
durante dez séculos,
teu corpo fechado
nas torres feudais
de imensos castelos,
foi corpo arrancado
da terra, da vida,
corpo sem raiz,
feito puro espírito,
mistério e tabu,
teu corpo adorado
foi corpo explorado.
E quando as Nações,
nos tempos modernos,
abriram caminhos
ao mundo futuro,
caminhos no mar
em busca de terras,
riquezas, escravos,
teu corpo apanhado
nas selvas da África
chegou ao mercado
vendido e comprado,
teu corpo de negra,
teus braços de serva,
teu sexo de fêmea,
teu ventre fecundo
produtor de escravos
dos donos do mundo.
Teu corpo apanhado
nas selvas da África,
nas terras indígenas,
nas tribos nativas
das ilhas no mar,
teu corpo ajudou
Europa a crescer
e um mundo a nascer
nas terras da América.

Chiquinha
Chiquinha
não lutas sozinha.

Chiquinha
teu corpo
ainda não é teu.
Não é livre a vida.
Não é livre o amor.
Chiquinha
teu corpo
mudou de senhor.

Tu sabes
Chiquinha
que a máquina que move
o mundo moderno
te vem libertar?
Tu sabes
(isto sim, tu sabes)
a máquina tem dono
e tu tens apenas
teu corpo de carne
que pede comida
e roupa
e abrigo,
teu corpo de carne
agarrado à vida.

A máquina
precisa mover
dinheiro! dinheiro!
e tu
precisas viver.

O dono da máquina,
teu dono e senhor,
Chiquinha,
é teu comprador.
Tu vendes teus braços,
trabalho, energia,
tu vendes teu tempo,
descanso, alegria,
vigor, juventude,
beleza e saúde,
futuro dos filhos,
tu vendes, tu vendes,
Chiquinha, que dor!
tu vendes teu sexo,
desistes do amor.

A máquina
te vem libertar.
Dinheiro! Dinheiro!
A máquina
te vem devorar.

A máquina
é monstro de lenda,
é monstro-dragão,
devora teu corpo,
é bicho-papão,
é monstro danado
de muitas cabeças,
tem corpo-serpente,
rasteja no chão,
seu hálito arrasa
como um furacão,
tem língua de fogo
tem asas e voa,
ligeiro, ligeiro,
cuspindo dinheiro,
devora teu corpo,
devora teu povo,
seu sangue e suor.
A máquina
te vem devorar.

Chiquinha
Chiquinha
tu sabes que a máquina
te vem libertar?

A máquina
conquista
a terra
e o céu
e o mar,
a máquina,
Chiquinha,
te vem libertar.

A máquina
prolonga teus braços,
liberta teu corpo
de serva doméstica,
te arranca de casa,
derruba as paredes
limites, fronteiras
do lar, doce lar
- prisão milenar -
e faz do teu corpo,
cansado
explorado
e multiplicado
na luta, esse mundo
difícil, Chiquinha
teu reino será.

Chiquinha
tu sabes que a máquina
que move
o mundo moderno
te vem libertar



Fonte: "Jacinta Passos, coração militante", Editora EDUFBA, 2010.
Originalmente publicado em: "Canção da Partida", Edições Gaveta, 1945.

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