Lira XVI
Poema de Thomaz Antônio Gonzaga
Minha Marília,
Tu enfadada?
Que mão ousada
Perturbar pôde
A paz sagrada
Do peito teu?
Porém que muito
Que irado esteja
O teu semblante
Também troveja
O claro céu.
Eu sei, Marília,
Que outra pastora
A toda a hora,
Em toda a parte
Cega namora
Ao teu pastor.
Há sempre fumo
Aonde há fogo:
Assim, Marília,
Há zelos, logo
Que existe amor.
Olha, Marília,
Na fonte pura
A tua alvura,
A tua boca
E a compostura
Das mais feições.
Quem tem teu rosto
Ah não receia
Que terno amante
Solte a cadeia,
Quebre os grilhões.
Não anda Laura
Nestas campinas
Sem as boninas
No seu cabelo,
Sem peles finas
No seu jubão?
Porém que importa?
O rico asseio
Não dá, Marília,
Ao rosto feio
A perfeição.
Quando apareces
Na madrugada,
Mal embrulhada
Na larga roupa,
E desgrenhada
Sem fita ou flor;
Ah que então brilha
A natureza!
Então se mostra
Tua beleza
inda maior.
O céu formoso,
Quando alumia
O sol de dia,
Ou estreitado
Na noite fria,
Parece bem.
Também tem graça
Quando amanhece;
Até, Marília,
Quando anoitece
Também a tem.
Que tens, Marília,
Que ela suspire!
Que ela delire!
Que corra os vales!
Que os montes gire
Louca de amor!
Ela é que sente
Esta desdita,
E na repulsa
Mais se acredita
O teu pastor.
Quando há, Marília,
Alguma festa
Lá na floresta,
(Fala a verdade)
Dança com esta
O bom Dirceu?
E se ela o busca,
Vendo buscar-se
Não se levanta,
Não vai sentar-se
Ao lado teu?
Quando um por outro
Na rua passa,
Se ela diz graça,
Ou muda o gesto,
Esta negaça
Faz-lhe impressão?
Se está fronteira
E brandamente
Lhe fita os olhos,
Não põe prudente
Os seus no chão?
Deixa o ciúme
Que te desvela;
Marília bela,
Nunca receies
Dano daquela
Que igual não for.
Que mais desejas?
Tens lindo aspecto;
Dirceu se alenta
De puro afeto,
E pundonor.
Fonte: "Marília de Dirceu", Irmãos Garnier Editores, 1862.
Originalmente publicado em: "Marília de Dirceu", 1792.