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Poema de Jorge de Lima



Acontece que uma face
alta noite vem juntar-se
a minha face. Magia:
ela penetra em meus lábios,
em minha fronte, em meus olhos;
e eu não sei se é a minha face
ou se é a face de meu sono
ou da morte. Ou quem diria?
- se de alguma criatura
composta apenas de face
incorpórea como o sono,
face de Lenora obscura
que penetra em minha sala
e do outro mundo me espia.
Apalpo-a. E é a minha face
que a mão leve acaricia,
sáo meus oIhos e meus lábios
frios lábios, frios olhos
devem ser da criatura
composta apenas de face,
face amada, fria, fria.
Os olhos fecham-se suaves
sobre a face prisioneira.
Abro os olhos: ei-la, esvoaça
rente aos meus lábios trementes,
sinto-lhe o hálito, ou é o vento
que abre a janela? Talvez.
Talvez de alguma criatura
composta apenas de face:
Asas sem ave, dir-se-ia
que elas tatalam a procura
de um ser de quem se apoderem,
escondem-se em minhas pálpebras,
não sei se a noite me cega,
se estou morto e se esta face
é a máscara da terra fria.
Descerro os olhos. Agouro:
As asas se abrem, dir-se-iam
as asas longas de um corvo
que alta noite procurasse
acolher-se em minha face.
Levo as mãos as minhas asas.
asas molhadas de lágrimas,
asas ou máscara fria,
ou sono ou treva, ou a noite,
ou a morte que me espia?
Abro as mãos sobre os meus olhos.
Deixai-me ó ser de face obscura
que do outro mundo me espia!
E minhas mãos são agora
as asas da ave escura
que fugindo a ventania
acolheu-se em minha face.
Asas ou máscara fria
banhada em lágrimas ou suor,
face da morte, dir-se-ia
a de alguma criatura
composta apenas de face,
incorpórea como a morte,
de anjo ou amada obscura
que do outro mundo me espia.
Minhas mãos ou as duas asas
espenujam-se no rosto
deste poeta adormecido.
E de sob o traço umbroso,
outras máscaras traídas
são um baralho de faces.
E enquanto a ave se espenuja
em sua negra porfia,
há outras faces trazidas
a superfície do morto.
Há outras faces, há faces
que é melhor não acordá-Ias
de baixo da face fria. 




Fonte: "Obra Poética", Editora Getulio Costa, 1949.
Originalmente publicado em: "Obra Poética", Editora Getulio Costa, 1949.

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