Vintém de cobre

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Poema de Cora Coralina



Eu vestia um antigo mandrião
de uma saia velha de minha bisavó.
Eu vestia um timão feio
de pedaços, de restos de baeta.

Vintém de cobre:
ainda o vejo
ainda o sinto
ainda o tenho
na mão fechada.

Vintém de cobre:
dinheiro antigo.
Moeda escura,
recolhida, desusada.
Feia, triste, pesada.

Corenta. Vintém. Derréis.
Dinheiro curto, escasso.
Parco. Parcimonioso
de gente pobre,
da minha terra,
da minha casa,
da minha infância.

Vintém de cobre:
Economia. Poupança.
A casa pobre.

Mandrião de saias velhas.
Timão de restos de baeta.
Colchas de retalhos desbotados.
Panos grosseiros, encardidos, remendados.
Vida sedentária.
Velhos preconceitos.
Orgulho e grandeza do passado.

Pé-de-meia sempre vazio.
E o sonho de ajuntar.
Melhorar de vida, prosperar,
num esforço inútil e tardio.

Corenta, vintém, derréis...
Eu ajuntando.
Mudando de caixinha, mudando de lugar.
Diziam, caçoando, as meninas da escola:
“- Muda de lugar que ele aumenta...”
Eu acreditava.
Guardava cinquinho a cinquinho
na esperança irrealizada
de inteirar quinhentos réis.
Fui criança do tempo do cinquinho,
do tempo do vintém.
Do antigo mandrião
de saias velhas da vovó.
De cobertas de retalho,
de panos grosseiros encardidos,
remendados.
De velhos preconceitos
- orgulho e grandeza do passado.
Opulência. Posição social.
Sesmarias. Escravatura.
Caixas de lavrado.

Parentes emproados.
Brigadeiros. Comendadores,
visitando a Corte,
recebidos no Paço.
Decadência...
Tempos anacrônicos, superados.

Fui menina do tempo do vintém.
Do timão de restos de baeta.
Fiquei sempre no tempo do cinquinho.

No tempo dos adágios que os velhos
sentenciavam
enfáticos e solenes:
“- Quem nasce pra derréis não chega a vintém”.
Pessimismo recalcando
aquele que pensava evoluir.
“Vintém poupado, vintém ganhado.”
Estatuto econômico. Mote gravado
no corpo de algumas emissões.
“Na pataca da miséria o diabo tem sempre um vintém.”
Isto se dizia, quando moça pobre se perdia.
“Quem compra o extraordinário
vê-se obrigado a vender o necessário.”
Doía... impressionava.
Era a Sabedoria que falava.

E a gente sentia até uma lagrimazinha de remorso
no canto do olho.
E se via mesmo de trouxinha na cabeça,
andando de déu em déu,
perseguida dos credores.
A casinha penhorada.
Os trenzinhos dados à praça.
Tudo irrecuperado, perdido,
porque tinha comprado o extraordinário:
um vestido de chita cor-de-rosa
pintadinho de azul.

O tempo foi passando, foi levando:
minha bisavó, meu avô, minha mãe, minhas irmãs.
A velha casa.
Os velhos preconceitos
de cor, de classe, de família.
O tempo, velho tempo que passou,
nivelou muros e monturos.
Remarcou dentro de mim
a menina magricela, amarela,
inassimilada,
do tempo do cinquinho.

Eu tinha um timão de restos de baeta.
Eu tinha um mandrião de uma saia velha
de minha bisavó.

Vintém de cobre:
Ainda o vejo
ainda o sinto
ainda o tenho
na mão fechada.
Moeda triste,
escura, pesada,
da minha infância,
da casa pobre.



Fonte: "Poemas dos becos de Goiás e estórias mais", Global Editora, 2012.
Originalmente publicado em: "Poemas dos becos de Goiás e estórias mais", Editora José Olympio, 1965.


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