Trem de gado

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Poema de Cora Coralina



E as boiadas vêm descendo do sertão!
Safra, entressafra...
Mato Grosso. Minas. Goiás.
Caminhos recruzados. Pousos espalhados.
Estradas boiadeiras. Aguada...
Pastos e gerais.
Cerrados. Cerradões...
Compáscuos...
Cercados. Aramados.
Corredores.
Nhecolândia. Pantanal.
Cochim.
Campos de Vacaria. Dourados. Maracaju.
Rio Verde.
Santana do Paranaíba. Serras do Amambaí.
Criatório...
Boiadeiros. Fazendeiros.
Comissários. Criadores.
Invernistas. Recria.
Trem de gado ronceiro...
jogando, gingando
nos cilindros, nos pistões, nas bielas e nos truques.
Rangendo, chocalhando,
estrondando nas ferragens.

Resfôlego de vapor.
Locomotiva crepitando, fagulhando,
apitando, sinalando, esguichando, refervendo.
Chiados, rangidos, golfadas, atritos, apitos.
Bandeira vermelha que se agita.
Bandeira verde da partida.
E o resfolegar do trem que vem, do trem que vai...

Trem de gado engaiolado, parado
na plataforma, na esplanada.
Gente que passa
- pára.

Corre os olhos. Conta as gaiolas. Avalia. Sopesa.
Soma. Dá o cômputo.
Espia. Mexe. Recua.
Procura agitar os bois famintos, sedentos.
Cansados, enfarados, pressionados.

Ribombos no tabuado.
Ameaçar inútil.
Coice. Chifres entrechocantes.
Traseiros esbarrondando.
Grades lameadas. Gaiolas estercadas, respingantes.

...e o boi que se deita exausto...
Exaustos, esfomeados, sedentos, engaiolados,
cansados.
Estradas de ferro ronceiras.
Longas viagens demoradas,
rotineiras.
Composição parada nos desvios - tempo
aguardando horário, partida, sinal...
Bandeira verde, apito...

Eu vi
o boi deitado, exausto.
Pisado. Mijado. Sujo. Escoiceado.
Quartos encolhidos. Juntas dobradas. Cabo inerte.
Olhar vidrado.
Vencido.

Encosta na paleta a cabeçorra enorme.
Começa a morrer.
Morre devagar... dias, noites...
Arrancos inúteis.
Mugido parco. Lúgubre...
Estrebuchar de agonia.

Emporcalhado - estira os quartos.
Alonga o pescoço. Encomprida o cabo.
Língua de fora, de lado.
Olhos abertos. Vidrados.
Morre o boi.
Olhos abertos, vidrados
vendo - o pasto verde,
o barreiro salitrado, a aguada fria, cantante,
distante...

Eu vi
a alma do boi pastando, lambendo, bebendo,
nas invernadas do Céu.
Eu vi - de verdade -
a alma do boi - boizinho pequenino,
entrando, deitando alegrinho
na lapinha de Belém.



Fonte: "Poemas dos becos de Goiás e estórias mais", Global Editora, 2012.
Originalmente publicado em: "Poemas dos becos de Goiás e estórias mais", Editora José Olympio, 1965.

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