O grifo da morte

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Poema de Mário de Andrade



I

Milhões de rosas
Para esta grave
Melancolia,
Milhões de rosas,
Milhões de castigos...

Milhões de castigos,
Imperfeita grávida,
Quem foi? foi o vento
Que fez-te imperfeita,
Milhões de aratacas!

A toca fendeu
Para esta grave
Melancolia,
Milhões de castigos,
Milhões de aratacas...

Salta o bicho roxo.
Depois ficou ruim,
Depois ficou roxo,
Depois ficou ruim,
20 Depois ficou roxo,
Ruim-roxo, ruim-roxo,
Milhões de bandeiras!

Os camisas pretas,
Os camisas pardas,
Os camisas roxas,
Ruim-roxo, ruim-roxo,
Milhões de bandeiras!
Milhões de castigos!
Quem foi? foi a rosa
Dos ventos da amarga
Desesperança...

Ei-vem a morte
– ruim-roxo... –
Consoladora...
Milhões de rosas,
Milhões de castigos...


II

Retorno sempre
A cada volta do caminho
À lagoa imóvel.

Superfície juncada
De mãos-postas negras
Que afundam sempre.

Meus olhos são moscas,
Única vida grave
Esparsa no silêncio.

O silêncio avança
Que nem um navio,
Não penso, estremeço.

Tremor sem razão
Que termina em meio
Nem bem principia.

A boca desdenha
As palavras ásperas,
Evitando a vida.

Mas... dor, periquito,
Novamente rufa
Da serrapilheira,
Sobe no alto no alto,
Vai dormir nas casas
Além da floresta.


III

Mocidade parva,
Dor sem pensamento,
Ôh cálido futuro
De brilho estonteante,
Fechando o presente
No punho cerrado
Com as unhas aduncas,
Ferindo a munheca
De onde o sangue escorre
Gravando o caminho
Com rasto facílimo
Em que a fera acode.
Lá no rombo escuso
Te pega nas garras,
Explode o suspiro.

Escurece aos poucos
Teu corpo auroral.


IV

Quando o rio Madeira
Fica inavegável,
A corredeira clara
Junto ao trem-de-ferro
Vai rasa entre as pedras
Da margem deserta,
Suspensa no charco
Imenso da morte.

A claridade vasta
Guasca Mato Grosso,
Filtrada da nuvem
Que de tão exausta
Se apoia na crista
De espuma do rio.

O calor mais branco
Esturrica as pedras
E tange o Grão Chaco
Pros altos dos Andes,
Onde as almas planam
Sem fecundidade,
Na terra sem mal,
Sem fecundidade.


V

Silêncio monótono,
Calma serenata
Na monotonia,
A alma sem tristeza
Pouco a pouco vai
Desabrochando
O instante do lago.

Morte, benfeitora morte,
Eu vos proclamo
Benfeitora, oh morte!
Benfeitora morte!
Morte, morte...

Se escuta no fundo
A sombra das águas
– calma serenata... –
Se depositando
Para nunca mais.



Fonte: "Poesia completa", Editora Itatiaia, 1987.
Originalmente publicado em: "Poesias", 1941.


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