O verbo encarnado - Myriam Fraga


Poema de Myriam Fraga



A carne não é triste.
É só delírio
O que vejo na tarde,
É apenas rastro
Do verão que se afasta
Como um bicho,
Rastejante, se afasta.

Apenas o sol,
Com seu brilho de facas,

E meu corpo se agita
Ao calor dessa luz
Que me apura os sentidos,
E estalo como fruta,
Como a pele das frutas,
Incontidas, aflitas.

Maduras fontes calmas,
De mel e de alfazema,
A serena, a doce aparição
Da face nos espelhos.

O momento que passa
E pode ser o último,
(Sempre pode ser o último.)
E, no entanto, esperdiças,
Quando a vida é apenas
Um céu azul polido
Na barra das manhãs
Coroadas de brumas.

E a esperança
É como aquela face
Perdida nos vazios
De um olho que escurece,
Esquecido de seus brilhos.

Não direi, não direi,
Mas como pesa
Uma lembrança morta
E rediviva
A cada novo verão,
Quando o sangue se agita
E atropela-se nas veias,
Como enguias aflitas.

Sabe a silêncio e sal
A minha boca.
Aqui se comemora o instante
E, mais que o instante,
O súbito fulgor
Da palavra saudade.

Porque agora é verão
E novamente o milagre
É esperar o impossível,
O desejado, o eterno
Faiscar de pirilampos
Nas esquinas do tempo.

Sopro no vazio,
Aliança no barro,
E esse rumor de mar,
Esse marulho,
Dividindo minhas águas,
Apagando em meu corpo
A maligna tatuagem,
Corrosiva e perfeita
Como um beijo.

A carne não é triste,
A carne é doce
Como uma palavra de adeus
Soprada nos ouvidos,
A lembrar que neste verão,
Talvez,
Ainda exista o milagre,
E o sangue, devagar,
Encontre seus atalhos,

E a chama, sempre a chama,
Incendeie os altares
Onde o verbo, revelado,
Enfim, se faça carne
E como um deus habite
O corpo que lhe cabe.




Fonte: "Poesia reunida", Oiti, 2021.
Originalmente publicado em: "Poesia reunida", Oiti, 2021.