O retrato flutuante - Murilo Mendes
Poema de Murilo Mendes
1
És a que dá sempre harmonia,
És a que nada pede, em suspenso,
A que fica na obscuridade das varandas
- Suave e cruel
Observando o desencadear dos elementos.
És a que nada pede, em suspenso,
A que fica na obscuridade das varandas
- Suave e cruel
Observando o desencadear dos elementos.
Surges quando ninguém te espera,
Surges, gaivota, em branco e negro,
Anunciando ao mesmo tempo
A vida mística e a sensual.
Desapareces deixando um só vestígio:
Partes em pluma, nervosa dançarina,
Cumprir tua invisível missão.
2
Até hoje não me doaste o desespero.
Vaporosa e mineral
Manténs a perspectiva,
Ordenas o segredo.
Todas as saudações te perturbam.
3
Teu corpo é um panejamento
Que te impede a liberdade:
Embora muito humana
Quiseras te despojar
da tua túnica de chumbo.
Antigas navegações te trouxeram
E com sopro foste restituída
À brancura, à timidez, ao amor impronunciado, dança.
4
Tens terror de ti mesma, do teu poder,
Quando abres o leque da tua bоса.
Insensível e sensível
Não acabaste de nascer para mim.
Levanto-me do sonho.
Nunca me viste, desconhecida.
Fonte: "Poesia completa e prosa", Nova Aguilar, 1994.
Originalmente publicado em: "Mundo Enigma", Editora Globo, 1945.
