A uma mulata

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Poema de Gregório de Matos



Parti o bolo, Luzia,
Que a mim mesmo me acomoda.
Não deis a fatia toda,
Dai-me parte da fatia.
Quem pede como eu pedia
Pede tudo o que lhe importa
E aceita o que se lhe corta;
E quem dá com manha e arte
Seus dados sempre reparte,
Se tem mais pobres à porta.

Não é bem que tudo eu cobre,
E é bem que um pouco me deis;
Dai-me um pouco e alegrar-me-eis:
Com pouco se alegra o pobre.
Não deis coisa que me sobre,
Dai-me sequer um bocado;
Mas o que vos persuado
Que deis com manha e com arte,
Dando vós e de tal parte,
Sempre será grande o dado.

Se a todos cinco sentidos
Não tendes coisa que dar,
Dai ao de ver e apalpar,
Os dois sejam preferidos.
Não deis que ouvir aos ouvidos,
Mas dai aos olhos que ver
E ao tato em que se entreter.
Deitemos a bom partir
Os dois sentidos a rir,
E os demais a padecer.

As mãos folgam de apalpar,
Os olhos folgam de ver,
Os dois logrem seu prazer,
Os três sintam seu pesar.
Que depois que isto lograr,
Virá o mais por seu pé;
Que, inda que ninguém me dê
Nem eu o tome a ninguém,
Morrerá vosso desdém
Às forças de minha fé.




Fonte: "Obra Poética", Tipografia Nacional, 1882.
Originalmente publicado em códices da segunda metade do século XVII.