Miséria
Poema de Cecília Meireles
Hoje é tarde para os desejos
e nem me interessa mais nada...
Cheguei muito depois do tempo
em que se pode ouvir dizer: "Oh! minha amada..."
O mar imóvel dos teus olhos
pode estar bem perto e defronte.
Mas nem navega as horas
nem se cuida mais de horizonte.
Durmo com a noite nos meus braços,
sofrendo pelo mundo inteiro.
O suspiro que em mim resvala
bem pode ser, a cada instante, o derradeiro.
Morrer é uma coisa tão fácil
que todas as manhãs me admiro
de ter o sono conservado
fidelidade ao meu suspiro.
E pergunto: "Quem é que manda
mais do que eu sobre a minha vida?
Neste mar de só desencanto
que sereia murmura uma canção desconhecida?
E em meus ouvidos indiferentes,
alheios a qualquer vontade,
que rostos vão reconhecendo
os passeios da eternidade?
Perto do meu corpo estendido,
náufrago inerte de sombras e ares,
quem chegará, desmanchando secretos níveis?
Serás tu? - para me levares..."
(Vejo a lágrima que escorre
por cima da minha pena.
Ai! a pergunta é sempre enorme,
e a resposta, tão pequena...)
Fonte: "Viagem", Editora Ocidente, 1942.
Originalmente publicado em: "Viagem", 1939.