O milagre
Poema de Joaquim Norberto de Sousa Silva
"Milagroso Santo Antônio,
As moças fazes casar,
E só eu do matrimônio
Não hei de o fruto provar?"
"Não mais creio em teu milagre;
Foi-se a minha devoção;
É justo não mais te sagre
A minha veneração."
"Lá nas pedras da calçada
Vai-te em pedaços fazer;
Que a minh'alma amotinada
Ai mais te não pode ver."
Tal dizia uma menina
Na sala, à janela sua,
E a imagem quase divina
Com ira atirava à rua.
Caminhava de passagem
Um moço rico e feliz,
Que leva no rosto a imagem,
A qual lhe quebra o nariz.
O sangue esguicha e lhe tinge
Camisa, veste e calção;
E a custo o moço atinge
A fatal habitação.
Sobe as escadas bradando
Contra o insulto que sofreu,
Ainda na mão mostrando
O santinho que o ofendeu.
A mãe da moça, que acode,
Não sabe a quem se voltar,
Que a filha suster mal pode
Que ai vai a desmaiar.
Mas enfim socorre o moço;
Busca-lhe o sangue estancar;
Mitiga-lhe o alvoroço
Com a razão lhe acalmar.
E vendo-o já mais tranquilo
Pede à filha - seu amor -
Que lhe explique tudo aquilo
Do modo que melhor for.
"Ai mamãe", exclama ela,
Que mal a meu santo fiz!
Lancei-o pela janela,
Quebrei do moço o nariz!"
"Minha filha, que desgraça!
Volta-lhe a mãe com pesar,
Não é coisa que se faça
Um santo assim maltratar!"
"Porém, mamãe, Santo Antônio
Não quer minha devoção,
Pedia-lhe o matrimônio
E o pedia sempre em vão!"
"Enfim zangada deixei-o
Para não mais o adorar;
Nada de novo! - Ameacei-o
De um dia à rua o lançar."
"E o tempo se passava
Sem eu o milagre ver;
Já para tia ficava,
Sem mesmo um namoro ter."
"Ontem no baile dançava
Sem ardor, sem ilusão;
Ah ninguém me procurava
Co' os olhos do coração."
"Hoje triste, consumida,
Não pude mais me conter;
Desesperei desta vida,
Quis com meu santo romper."
"Porém ele castigou-me;
0 que se deu eis ai:
De tal modo envergonhou-me
Que de pena não morri!"
O moço, esta história ouvindo,
Ao riso não resistiu
E a mãozinha lhe pedindo
De seus beijos a cobriu.
"Milagroso na verdade,"
Disse ele, "é o santo teu,
Por ti amor e amizade
Já sente este peito meu!"
"Se me queres por esposo,
Aceita aqui minha mão;
Santo Antônio milagroso
Bendirá nossa união."
Corou a linda menina
E a mão do jovem apertou.
E com a imagem divina
Logo se conciliou.
Concertou-se a benta imagem,
Novo brilho se lhe deu
E teve digna homenagem
No oratório que se ergueu.
E ante a imagem bendita
Casou-se o moço feliz
A quem a moça bonita
Deixou quase sem nariz.
E dizem que Santo Antônio
Já seus milagres não faz,
Quando até no matrimônio
Mostra inda do que é capaz.
Fonte: "Flores entre espinhos", B. L. Garnier, 1864.
Originalmente publicado em: "Flores entre espinhos", B. L. Garnier, 1864.