O dote


Poema de Joaquim Norberto de Sousa Silva



É noite! A escrava cidade
Jaz em trevas sepultada,
Deplorando amargurada
Sua sorte e condição:
Ah pesam-lhe os duros ferros
A que Ruy Vaz a condena,
Sofre e chora a dura pena
De sua negra opressão!

O povo opresso se curva
À despótica ameaça
E guarda velando o paço
Do brutal governador.
Veem-se grupos armados
Arcabuzes empunhando
E nos ares agitando
Fachos de triste palor.

E no seu paço dourado
Com a maior impudência
Celebra a injusta audiência
O detestável mandão.
E caras patibulares
O cercam lisonjeando
Como parvos se prestando
A sua louca ostentação.

Eis uma abatida moça
Do seu trono se aproxima;
A mãe que a acompanha a anima
E em seus braços a sustém.
Ela quase desfalece
Vendo ali entronizado
O déspota, que escravizada
A toda a cidade tem.

A seus pés se curvam ambas
A dura destra beijando
Com seus beijos bajulando
A mão que as deve vingar,
E impassível as contempla
O governador sanhudo
Afetando tino e estudo
Para mais se autorizar.

"Meu senhor", exclama a velha,
"Venho aqui pedir justiça
A quem nunca a desperdiça
Para vingar o pudor.
Mão impura maculou-me
Este tão formoso lírio;
Roubou-me, ó duro martírio,
Seu casto e virgínio odor!"

"Que dizes, que não te entendo?"
Volta o capitão. A pobre
O triste rosto descobre
Deixando cair o véu
E ajunta: "Perverso moço
Zombou d'esta criatura,
Levou-lhe toda a ventura
Com o dote que deu-lhe o céu."

"Como? O que dizes? Que falas?"
Lhe torna o juiz que implica
Com quem logo não se explica
A sua compreensão.
"Fala-me claro, bem claro,
Que é somente o que desejo;
Para mim o queijo é queijo,
E pão não passa de pão."

"Senhor", responde-lhe a velha,
"Eu não sei como vós diga
O que o pudor me obriga
A vos dar só a entender,
Porém como é necessário
Falar um pouco mais claro
Fá-lo-ei, que o vosso amparo
Quero em tudo merecer."

A filha cobriu o rosto
Com as mãos os olhos tapando
Em quanto a mãe foi falando
Bem ou mal a seu pesar.
Ruy Vaz acabada a historia
Para os seus guardas acena,
E em breves vozes ordena
Que vão o réu lhe buscar.

Dito e feito!... Oh nesse tempo
Era cega a obediência;
Vinha tudo em continência
De tais mandões ao sabor.
Entre os guardas entra o moço
Opresso, manietado;
No olhar alvoroçado
Se vê do crime o autor.

E interrogado responde:
"Ó governador, ouvi-me:
Fiz o que dizeis; meu crime
Negá-lo não quero, mas..."
Calou-se. Longo silêncio
Reinou em toda a audiência;
Contendo sua inclemência
Pensava o grande Ruy Vaz.

Aquele "Mas..." era tudo
Para o juiz que bem via
Quanto dizer não queria
Uma reticência tal...
Era a defesa do moço
E era da moça a culpa
A quem só a mãe desculpa
No seu amor filial.

"Pois bem", bradou com voz firme
O capitão mór; "eis o dote:
Pago-o pelo rapazote
Que não tem com que pagar."
E assim dizendo, dos bolsos
Tirava ouro e mais ouro,
Pois tinha em si um tesouro
Para a menina dotar.

A mãe arrecada o dote
Doblas às dúzias juntando,
Ávidos olhos cevando
Em tanta fascinação;
Ao juiz agradecendo
Justiça tão agradável,
Se afasta com riso amável,
Cheio de satisfação.

Longo silencio de novo
Reinou em toda a audiência;
Nunca se viu tal clemência
Nesse mágico Ruy Vaz;
Porém ele meditava
Sair-se bem do negócio,
Não estava pois em ócio
Que de mais era capaz.

De repente levantou-se
Com os olhos cheios de ira,
Que da alma lhe transpira
Na voz que imita o trovão.
Ao moço infeliz se volta
Com toda a ferocidade,
Qual desfeita tempestade
Ou erupto vulcão.

"Já", diz ele, "já garoto,
Vil brilhante, sem demora
Atrás daquela senhora
Corre o meu ouro a buscar;
Traga já o meu dinheiro,
Que dei-o indevidamente;
Paguei eu que era inocente
O que devias pagar!"

"Desatai-o", diz aos guardas,
"Desatai esse brejeiro,
Pra que possa mais ligeiro
As minhas ordens cumprir;
E que não cumpra, coitado,
Há de acontecer-lhe boa;
Há de dar consigo em Goa,
Para onde o farei seguir!"

Livre das cordas, parte
O moço após a ventura,
Temendo que a sorte dura
Não o venha atraiçoar;
Passou-se. Foi longa a pausa
E o silencio da audiência,
Onde em dura obediência
Ninguém se atreve a falar.

Ouvem-se gritos ao longe;
Já mais perto; mais distintos;
E depois de todo extintos
Entra rude multidão.
O moço vem agarrado
Por esbirros da policia
E por guardas da milícia,
Qual descarado ladrão.

A mãe ao lado da filha,
A mísera e mesquinha amante,
Respira por um instante
E depois começa assim:
"Senhor! Este vil perverso
Com a mais proterva insolência
Zombou de vossa clemência,
E me quis roubar por fim!"

"E não roubou-te? Tens inda
Todo o ouro?" Lhe pergunta
O capitão. "Sim", ajunta
A mãe com satisfação;
"Este insolente esforçou-se
Para roubar-me! A disputa
Passou a mais feia luta
E gritei: - Pega ladrão!"

"Acudiu armada gente,
Paisanos e milícia
Que com a vossa polícia
Não há quem queira brincar;
O descarado foi preso,
E eu dele queixar-me venho,
Que muito receio tenho
Que me possa incomodar."

O governador sorriu-se
E disse: "Ó mãe desgraçada,
Se fosse mais desvelada
Pelo filial pudor,
Quem neste mundo haveria
Que pudesse audaz, ufano,
Zombar com perverso engano
De teu cuidado e amor?"

"Põe ai o meu dinheiro
E foge da vista minha;
Vai, ó misera e mesquinha,
A tua culpa expiar.
Que quem com todo.o cuidado
Sabe guardar o seu ouro,
Também da filha o tesouro
Sabe zelar e guardar."



Fonte: "Flores entre espinhos", B. L. Garnier, 1864.
Originalmente publicado em: "Flores entre espinhos", B. L. Garnier, 1864.


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