Aborrecimentos de Aninha

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Poema de Cora Coralina



Meus vestidos de menina...
pregados - saia e corpo.
Abotoados na cacunda.
Pala rodeada de babados
que eu mordiscava, mascava,
estragava. Mãe ralhava.
Falta de cálcio, vitamina, alimentação,
leite, ovos, esclarecida depois do tempo.
Vício, dizia a casa. Filha de velho doente.

Meus vestidos... corpo pregado.
Um cinto estreito de permeio.
Gola no pescoço, mangas compridas,
saia franzida,
barra redobrada.
Aninha podia crescer e perder o vestido,
ficar curto, coisa assim, de grande perigo.
Também o borzeguim, um ponto acima.
Meu pequenino pé de folga, perdido no espaço largo.
Podia crescer e perder o borzeguim.
Borzeguim... quem fala ou escreve mais esta palavra...
sabe a menina do presente o que seja calçar um borzeguim?
Meia listrada na horizontal, amarrada com tiras de pano,
caídas, de boba que eu era, filha de velho doente.

Os panos de meus vestidos... Toale de Vichi.
Prete noir, dizia colorida estampa colada na peça.
Preto e branco, outros azulentos, empastados, feiosos.
Eu queria pano ramado, florido, não podia.
Isto era para gente moça, sempre a mesma repetição.
Pala, babado, rodeando para ser alcançado,
babado, mascado de Aninha, feiosa, seus vestidos iguais,
enjoados.
Pano reforçado, barra redobrada, duráveis.

“Vestido de escola”... Chegar em casa, trocar.
Vestidinho caseiro de riscado, costurado de minha bisavó.
Mandrião folgado de não acabar, chinelinha nos pés.
Borzeguim... sempre o borzeguim guardado debaixo da cama.
Debaixo da cama... quanta coisa se guardava e se escondia.
Debaixo da cama...
Debaixo do colchão... Dinheiro, principalmente,
alguma notinha de 1.000 réis, 2.000 réis.
A gente ter ali, no escondido.
“De repente acontece alguma coisa”...
E a notinha dobrada, escondida, pronta a acudir a precisão.
Meu Deus! debaixo da cama tinha um mundo de guardados esquecidos,
imprestáveis, intocáveis, eternizados.
Era um depósito, e que ninguém bulisse naquilo.

Meu vestido branco de damacê... desenhos lavrados no tecido,
flores, figuras geométricas, até passarinho.
Pala, babado de bordado.
Fita azul no ombro, vestido pregado, refegado,
pra descer quando crescer. Laçarote na cintura,
borzeguim novo chiante de amarrar.
Sofia Martins, costureira por intuição, recém​-casada,
vizinha, praticou o primor.

Era o Crisma, o último cerimonial pelo bispo, Dom Eduardo Duarte da Silva.
Saía de Goiás, aborrecido, para não mais retornar.
Minha madrinha - Mestra Silvina.
Eu, faceira, cabelo solto, amarrado com fita azul,
repuxado para trás.
Queria penteado diferente, coisa linda.
Via com as outras. Não podia. Meu cabelo não dava.
Pouco, liso e fino - herança de meu pai.
Tudo que não alcancei na vida, devo ao meu cabelo...
liso, pouco, fino, nunca deu penteado de moda.
Daí meus fracassos e derrotas.
Pouco, liso e fino - herança de meu pai.

Carreguei sempre esta herança paterna.
Vida de criança...
Vidinha de Aninha, a mal​-amada, a mal​-aceita,
retrato vivo de um velho doente.

Minha irmã Germana, vestido, todo fitas e rendas,
oferecido pela madrinha - Anoca Santa Cruz.
Anoca Santa Cruz... elegante, viva, alegre, de comunicação
(diriam hoje).
Naquele tempo, dada, desembaraçada, espirituosa.
Liderava a sociedade goiana, era ouvida em organização de festas.
O Palácio nada fazia, no sentido social, sem ouvi​-la.
Entregava​-lhe a direção.
Inventava, figurinava. Figurinou moda:
penteado alto, barrete frígio, símbolo republicano recém​-implantado.
Um dia, lançou novidade, nunca vista, sonhada sequer:
Ramo de pimenta malagueta no penteado.

Sei que as pimenteiras foram desgalhadas.
Não sobrou moça na cidade que não tivesse no cabelo
seu ramo de pimenta.
Anoca Santa Cruz, foi madrinha de minha irmã.
Eu, Mestra Silvina, tendo sido mestra de minha mãe,
estimada, respeitada por ela.
Minha irmã caçula, sua madrinha - uma velha gorducha,
redonda, conversadeira, gente de São Pedro, de apelido Taíca,
povo do lado do Pai.
Deu o vestido pronto e uma boneca de “loiça”, no dizer de minha bisavó.

Era de praxe o presente da madrinha.
A gente esperava, enfeitava, antecipava o ganho, o presente.
Imaginava, acrescentava.
Tão raro criança ganhar presente
naquele longínquo fim de 1894.
Saía de Goiás, Dom Eduardo Duarte da Silva.
Aquele Crisma - sua última cerimônia litúrgica
na Capela do Seminário.
Eu, menina boba, medrosa, filha de velho doente, com medo do Crisma.
Impreparada para o cerimonial.
O bispo alto, robusto, sua veste episcopal
ampla, vermelha, fulgurante.
Aquela imponência litúrgica, impondo crisma - Santos Óleos
na testa dos neófitos, um latim arcaico confirmando o batismo.
No silêncio da capela, um choro convulso de crianças intimidadas.



Fonte: "Vintém de cobre", Global Editora, 2012.
Originalmente publicado em: "Vintém de cobre: meias confissões de Aninha", Editora da UFG, 1983.
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