Ao braço forte - Gregório de Matos
Poema de Gregório de Matos
Preso entre quatro paredes
Me tem Sua Senhoria,
Por regatão de despachos,
Por fundidor de mentiras.
Dizem que eu era um velhaco,
E mentem, por vida minha;
Que o velhaco era o Governo,
E eu a velhacaria.
Quem dissera, quem pensara,
Quem cuidara, e quem diria
Que um braço de prata velha,
Pouca prata e muita liga;
Tanto mais que o braço forte
Fosse forte, que poria
Um cabo de calabouço
E um soldado de golilha?
Porém, eu, de que me espanto,
Se nesta terra maldita
Pode uma ovelha de prata
Mais que dez onças de alquimia?
Quem me chama de ladrão
Erra o trinco à minha vida;
Fui assassino de furtos,
Mandavam-me, obedecia.
Despachavam-me a furtar,
E eu furtava e abrangia:
Serão boas testemunhas
Inventários e partilhas.
E eu era o ninho de guincho
Que sustentava e mantinha
Co’o suor das minhas unhas
Mais de dez aves rapinas.
O povo era quem comprava,
O General quem vendia,
E eu, triste, era o corretor
De tão torpes mercancias.
Vim depois a aborrecer,
Que sempre no mundo fica
Aborrecido o traidor
E a traição muito benquista.
Plantar o ladrão de fora,
Quando a ladroíce fica,
Será limpeza de mãos,
Mas de mãos mui pouco limpas.
Eles guardaram o seu
Dinheiro, açúcar, farinhas,
E até a mim me embolsaram
Nesta hedionda enxovia.
Se foi bem feito ou mal feito,
O sabe toda a Bahia;
Mas se a traição me fizeram,
Com eles a traição fica.
Eu sou sempre o Braço Forte,
E nesta prisão me anima
Que, se é casa de pecados,
Os meus foram ninharias.
Todo este mundo é prisão,
Todo penas e agonias;
Até o dinheiro está preso
Em um saco que o oprima.
A pipa é prisão do vinho,
E da água fugitiva,
Sendo tão livre e ligeira,
É prisão qualquer quartinha.
Os muros de pedra e cal
São prisão de qualquer vila;
Da alma é prisão o corpo,
Do corpo é qualquer almilha.
A casca é prisão da fruta,
Da rosa é prisão a espinha,
O mar é prisão da terra,
A terra é prisão das minas.
Do ar é cárcere um odre,
Do fogo, é qualquer pedrinha,
E até de um céu, outro céu
É uma prisão cristalina.
Na formosura e donaire
De uma muchacha divina
Está presa a liberdade,
E na paz, a valentia.
Pois, se todos estão presos,
Que me cansa ou me fadiga,
Vendo-me em casa de El-Rei
Junto a Sua Senhoria?
Chovam prisões sobre mim,
Pois foi tal minha mofina
Que, a quem dei cadeias de ouro,
De ferro m’as gratifica.
Fonte: "Obra Poética", Tipografia Nacional, 1882.
Originalmente publicado em códices da segunda metade do século XVII.
