Queria primeiro se lavar
Poema de Gregório de Matos
O lavar depois importa,
porque antes em água fria
estarei eu noite e dia
batendo-vos sempre à porta:
depois que um homem aporta,
faz bem força por entrar,
e se hei de o postigo achar
fechado com frialdade,
antes quero a sujidade,
porque enfim me hei de atochar.
Não serve o falar de fora,
Babu, vós bem o sabeis,
dai-me em modo que atocheis
e esteja ele sujo embora:
e se achais, minha Senhora,
que estes são os meus senões,
não fiquem meus gostos vãos,
nem vós por isso amuada,
que ou lavada ou não lavada
coisa é de que levo as mãos.
Lavai-vos, minha Babu,
cada vez que vós quiseres,
já que aqui são as mulheres
lavandeiras do seu cu:
juro-vos, por Berzabu,
que me dava algum pesar
vosso contínuo lavar,
e, agora, estou nisso lhano,
pois nunca se lava o pano
senão para se esfregar.
A que se esfrega amiúdo
se há de amiúdo lavar,
porque lavar e esfregar
quase a um tempo se faz tudo:
se vós por modo sisudo
o quereis sempre lavado,
passe: e se tendes cuidado
de lavar o vosso cujo
por meu esfregão ser sujo,
já me dou por agravado.
Lavar a carne é desgraça
em toda a parte do Norte,
porque diz que dessa sorte
perde a carne o sal e graça:
e se vós por esta traça
lhe tirais ao passarete
o sal, a graça e o cheirete,
em pouco a dúvida topa,
se me quereis dar a sopa,
dai-ma com todo o sainete.
Se reparais na limpeza,
ides enganada em suma,
porque, em tirando-se a escuma,
fica a carne uma pureza:
fiai da minha destreza,
que nesse apertado caso
vos hei de escumar o vaso
com tal acerto e escolha
que há de recender a olha
desde o Nascente ao Ocaso.
As Damas, que mais lavadas
costumam trazer as peças
e disso se prezam, essas
são Damas mais deslavadas:
porque, vivendo aplicadas
a lavar-se e mais lavar-se,
deviam desenganar-se
de que se não lavam bem,
porque mal se lava quem
se lava para sujar-se.
Lavar para me sujar,
isso é sujar-me em verdade,
lavar para a sujidade
fora melhor não lavar:
do que serve pois andar
lavando antes que mo deis?
Lavai-vos quando o sujeis,
e porque vos fique o ensaio,
depois de foder lavai-o,
mas antes não o laveis.
Fonte: "Obra Poética", Editora Record, 1992.
Originalmente publicado em códices da segunda metade do século XVII.