Foi esta dama vista pelo poeta certa manhã

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Poema de Gregório de Matos



Ontem, ao romper da aurora,
começando o amanhecer,
vi, desta parte do ocaso,
dois sóis a quem quero bem.

Que, fazendo oposições
com brilhantes rosicler,
ao sol que, de envergonhado,
se começava a esconder.

Eclipsados vi seus raios,
mas quem suas luzes vê,
nas admirações se pasma,
nas invejas perde o pé.

Que a beleza singular,
que ostentam seus olhos, sei,
que o sol não quer competi-la,
porque a saiba engrandecer.

Cegam os seus resplandores,
e de tal sorte me tem,
que não como ao sol me escondo,
porém morro por te ver.

Como cega borboleta,
ao fogo da minha fé,
se queima a desconfiança
de nunca te merecer.

Valha-te Deus por Bética,
não sei dizer-te, meu bem,
como vivo enamorado,
como estou, não sei dizer.

Porque, entre o doce de amar-te
e o amargo de te não ver,
hei de viver da esperança
ou da saudade morrer.

Tua rara formosura,
eu a não sei compreender,
porque um não és tens de humana
e um quase divina és.

E já que, nesta cegueira,
tua beleza me tem,
ou me corresponde amante
ou me acaba de uma vez.

Porque tão confuso vivo,
tão triste me chego a ver,
tão temeroso me atrevo,
que é um abismo cruel.

Tal abismo o peito sente:
ora permite, meu bem,
diminuir os incêndios,
acabe-se o padecer.

Toma o astuto piloto
o sol, só para saber
se se acha na boa altura,
mas sem carta nada fez.

E, pois no mar de meus olhos
perigos receia a fé,
manda-me, por não perder-te,
uma carta desta vez.

Dá-me velas à esperança,
com elas marearei,
já que o fogo da vontade
sempre está firme a teus pés.




Fonte: "Obra Poética", Editora Record, 1992.
Originalmente publicado em códices da segunda metade do século XVII.