O cântico de Dorva

Imagem de Cora Coralina

Poema de Cora Coralina



I

Dorva é moça de sítio. 
A mãe de Dorva morreu. 
Chovia... chovia... 
a noite inteira choveu 
enquanto gente da roça 
rezava alto, rezas da roça. 
Dorva chorava- velava. 
A morta entre as velas amarelas 
esperava entre flores: 
a mortalha, o caminhão, o caixão 
que vinha da cidade. 
O caixão pra morta 
O sufrágio pra Dorva. 
 
II

O caminhão chegou de manhã cedo 
e voltou levando no caixão£o a mãe de Dorva. 
Levando gente, acompanhamentos, 
parando nos botecos das estradas - 
matando o bicho 
depois da noitada. 
Sufrágio - luto, 
Coroa- caixão 
Englobados. 

III

O luto de Dorva é pra sair 
na missa de sétimo ou trigésimo dia. 
Já passou a missa. 
Dorva tomou o lugar da morta 
na casa, na tina, no fogão. 

IV
 
Dorva se chama Dorvalina.
Cabeça amarrada com lenço de chita.
Vestido grosseiro, apertado, descosturado.
Braço grosso, mãos vermelhas.
Perna grossa cabeluda.
Dorva de pé no chão:
pé curto – descalço, esparramado
fincado no chão.
Dorva, toda – estua sexo: vida nova. 

V

Dorva é moça da roça.
Dorva lava roupa na tina:
roupa grossa de homem – calça mescla, camisa de riscado.
Geme o sarilho do poço.
Tibum... a lata vem cheia d’água.
Vai ensaboando,
vai cantando:
laranja-da-china
limão-bravo, cana-doce
se encontra aqui
se encontra acolá.
Pra dá, pra vendê
pra quem quisé
pra quem passá.
Se dá fogo, se dá água
Não pode negá.
A cantiga de Dorva:
alta, gritada,
Bramido de fêmea –
apelo enfeitado

VI

É meio-dia; a sombra está marcando. 
O sol num desafio de luz 
fustiga a poeira da estrada. 
Silêncio no sítio. 
Um galo canta longe. 
Distante, um corno de ponteiro. 
Boiadeiro vem vindo devagar...
Os homens lá no eito
relanceiam enxadas.
O milharal chama Dorva.
O cheiro da terra chama.
O arrozal tem seus ninhos
chamando Dorva.
Um assovio fino, espraiado
fere Dorva.
Larga a roupa, deixa a tina.
Torce o vestido mesmo no corpo,
molhado na barriga.
Olha pra os lados.
Gritam as angolas. Grita um bem-te-vi.
Dorva afunda no milharal.

VII

O ninho de Dorva.
A cama de Dorva
de palha e folha
na terra.
Deixa-se cair
sentada, deitada.
Sobre seu ventre liso, redondo
Desnudo,
salta o macho.
Um ofego de posse
Tácito.
Sexo contra sexo.
Aquele cântico de Dorva,
aquele chamado – piado de fêmea:
obscuro
aflitivo
genésico
instintivo
veio vindo... veio vindo...
Rugindo
chorando
gritando
apelando
do fundo dos tempos 
do fundo das idades.



Fonte: "Meu livro de cordel", Global Editora, 2012.
Originalmente publicado em: "Meu livro de cordel", Editora Cultura Goiana, 1976.

Tecnologia do Blogger.