Noturno resumido

Imagem de Murilo Mendes

Poema de Murilo Mendes



A noite suspende na bruta mão
que trabalhou no circo das idades anteriores
as casas que o pessoal dorme comportadinho
atravessado na cama
comprada no turco a prestações.

A lua e os manifestos de arte moderna
brigam no poema em branco.

A vizinha sestrosa da janela em frente
tem na vida um camarada
que se atirou dum quinto andar.
Todos têm a vidinha deles.

As namoradas não namoram mais
porque nós agora somos civilizados,
andamos no automóvel gostoso pensando no cubismo.

A noite é uma soma de sambas
que eu ando ouvindo há muitos anos.

O tinteiro caindo me suja os dedos
e me aborrece tanto
não posso escrever a obra-prima
que todos esperam do meu talento.



Fonte: "Antologia Poética", Cosac Naif, 2014.
Originalmente publicado em: "Poemas", Companhia Dias Cardoso, 1930.


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