Paisagens com cupim (trechos)

Imagem de João Cabral de Melo Neto

Poema de João Cabral de Melo Neto



1

O Recife cai sobre o mar
sem dele se contaminar.
O Recife cai em cidade,
cai contra o mar, contra: em laje.

Cai como um prato de metal
sobre outro prato de metal
sabe cair: limpo e exato
e sem contágio: em só contato.

Cai como cidade que caia
vertical e reta, sem praia.
Cai em cais de cimento, em porto,
em ilhas de aresta e contorno.

O Recife cai em água isento.
Bem calafetado o cimento:
ao dente da ostra, ou sua raiz,
aos bichos do mar, seus cupins.


7

No canavial tudo se gasta
pelo miolo, não pela casca.
Nada ali se gasta de fora,
qual coisa que em coisa se choca.

Tudo se gasta mas de dentro:
o cupim entra os poros, lento,
e por mil túneis, mil canais,
as coisas desfia e desfaz.

Por fora o manchado reboco
vai-se afrouxando, mais poroso,
enquanto desfaz-se, intestina,
o que era parede, em farinha.

E não se gasta com choques,
mas de dentro, tampouco explode.
Tudo ali sofre a morte mansa
do que não quebra, se desmancha.



Fonte: "Serial e antes", Editora Nova Fronteira, 1997.
Originalmente publicado em: "Quaderna", 1960.


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