O abandono
Poema de Manoel de Barros
O mato tomava conta do meu abandono
A língua era torta
Verbos sumiam no fogo
Um caranguejo curto sementava entre harpas
Havia um cheiro de águas abertas e um grilo
No caderno era comum
Crianças recolherem o mar e as pernas da mesa
Estávamos sempre
descendo
uma rampa
mole
Janette contribuía 78% para o progresso e o
desentendimento entre os homens
Um idiota de estrada passava por árvore
Sapos entravam de roupa e tudo nos tanques
Portas criavam cabelos
Na esquina
Garotos quebravam asas contra as paredes
Crias de ema entravam nos armazéns
Um dia
A moça atravessou a rua como se um peixe saísse
do armário
O rio empernava as casas
Batiam latas lá fora
Abriam o rádio e o coração até o fim...
Originalmente publicado em: "Matéria de poesia", 1970.