Como a morte se infiltra

Imagem de João Cabral de Melo Neto

Poema de João Cabral de Melo Neto



Certo dia, não se levanta,
porque quer demorar na cama.

No outro dia ele diz por quê:
é porque lhe dói algum pé.

No outro dia o que dói é a perna,
e nem pode apoiar-se nela.

Dia a dia lhe cresce um não,
um enrodilhar-se de cão.

Dia a dia ele aprende o jeito
em que menos lhe pesa o leito.

Um dia faz fechar as janelas:
dói-lhe o dia lá fora delas.

Há um dia em que não se levanta:
deixa-o para a outra semana,

outra semana sempre adiada,
que ele não vê por que apressá-la.

Um dia passou vinte e quatro horas
incurioso do que é de fora.

Outro dia já não distinguiu
noite e dia, tudo é vazio.

Um dia, pensou: respirar,
eis um esforço que se evitar.

Quem deixou-o, a respiração?
Muda de cama. Eis seu caixão.



Fonte: "A educação pela pedra e depois", Editora Nova Fronteira, 1997.
Originalmente publicado em: "Agrestes", 1985.

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