"Generaciones y Semblanzas" (trechos)
Poema de João Cabral de Melo Neto
Há gente que se gasta
de dentro para fora.
E há gente que prefere
gastar-se no que choca:
nesta pertence aquela
sempre vertiginosa
que parece habitar
num corpo sobre rodas;
gente que não consegue
parar nenhuma hora
e que assim se aproveita
de toda sua corda
para andar se atirando
contra as coisas em volta,
talvez com a esperança
que uma seja pistola.
Talvez, é por prezar
o mundo em que se mova
(a espessura tranquila
de uma coisa que pousa,
a mansidão da coisa
que aceita virar outra)
que essa gente se atira
aos trancos entre as coisas.
Não: é porque ouviriam,
se parassem uma hora,
a voz da alma vazia
dobrando dentro, morta,
a voz que dobra em muitos
mas que neles redobra
porque dentro de crânios
vaziíssimos, de abóbada.
*
Há gente que se infiltra
dentro de outra, e aí mora,
vivendo do que filtra,
sem voltar para fora.
E passa uma outra gente
que se infiltra e retorna,
vivendo com o de dentro
que subtraiu, na volta.
É coisa complicada
dizer, pelas manobras,
o parasita simples
e o de alma insidiosa;
é igual o movimento
de raiz cavilosa,
aliás, menos de raiz
que de gusano, ou cobra,
e igual a habilidade
de imiscuir-se, untuosa,
e de coar pelos poros
sua natureza osmótica.
Mas se o primeiro tipo
se satisfaz com a sombra
e no corpo que o abriga
vegeta mudo, em coma,
o outro, mais cedo ou tarde,
retorna e desabrocha:
na flor da delação,
a única em que flora,
flor toda à imagem dele,
furta-cor, furta-forma,
flor de planta que não
pode florir, e aborta.
Originalmente publicado em: "Serial", 1961.