Apelo a meus dessemelhantes em favor da paz

Imagem de Carlos Drummond de Andrade

Poema de Carlos Drummond de Andrade



Ah, não me tragam originais
para ler, para corrigir, para louvar
sobretudo, para louvar.
Não sou leitor do mundo nem espelho
de figuras que amam refletir-se
no outro
à falta de retrato interior.
Sou o Velho Cansado
que adora o seu cansaço e não o quer
submisso ao vão comércio da palavra.
Poupem-me, por favor ou por desprezo,
se não querem poupar-me por amor.
Não leio mais, não posso, que este tempo
a mim distribuído
cai do ramo e azuleja o chão varrido,
chão tão limpo da ambição
que minha só leitura é ler o chão.
Nem sequer li os textos das pirâmides,
os textos dos sarcófagos,
estou atrasadíssimo nos gregos,
não conheço os Anais de Assurbanipal,
como é que vou -
                            mancebos,
                            senhoritas,
- chegar à poesia de vanguarda
e às glórias do 2000 que telefonam?
Passam gênios talvez entre as acácias
sinto estátuas futuras se moldando
sem precisão de mim
que quando jovem (fui-o A. C., believe it or not)
nunca pulei muro de jardim
para exigir do morador tranquilo
a canonização do meu estilo.
Sirvam-se de exonerar este macróbio
do penoso exercício literário.
Não exijam prefácios e posfácios
ao ancião que mais fala quando cala.
Brotos de coxa flava e verso manco,
poetas de barba-colar e velutínea
calça puída, verde: tá!
Outoniços, crepusculinos, matronas, contumazes:
tá!
O senhor saiu. Hora que volta? Nunca.
Nunca de corvo, nunca de São Nunca.
Saiu para não voltar.
Tudo esqueceu: responder
cartas; sorrir
cumplicemente; agradecer
dedicatórias; retribuir
boas-festas; ir ao coquetel e à noite
de autógrafos-com-pastorinhas.
Ficou assim: o cacto de Manuel
é uma suavidade perto dele.
Respeitem a fera. Triste, sem presas, é fera.
Na jaula do mundo passeia a pata aplastante,
cuidado com ela!
Vocês, garotos de colégio, não perguntem ao poeta
quando nasceu.
Ele não nasceu.
Não vai nascer mais.
Desistiu de nascer quando viu que o esperavam garotos de colégio
de lápis em punho
com professores na retaguarda comandando: Cacem o urso-polar,
tragam-no vivo para fazer uma conferência.
Repórteres de vespertinos, não tentem entrevistá-lo.
Não lhe, não me peçam opinião
que é impublicável qualquer que seja o fato do dia
e contraditória e louca antes de formulada.
Fotógrafos: não adianta
pedir pose junto ao oratório de Cocais
nem folheando o álbum de Portinari
nem tomando banho de chuveiro.
Sou contra Niepce, Daguerre, contra principalmente minha imagem.
Não quero oferecer minha cara como verônica nas revistas.
Quero a paz das estepes
a paz dos descampados
a paz do pico de Itabira quando havia pico de Itabira
a paz de cima das Agulhas Negras
a paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada de Morro Velho
a paz
da
paz.



Fonte: "Antologia Poética", Editora Record, 2001.
Originalmente publicado em: "Viola de bolso", Cadernos de Cultura do MEC, 1952.


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