A sevilhana que não se sabia

Imagem de João Cabral de Melo Neto

Poema de João Cabral de Melo Neto



Quando queria dá-la a ver
ou queria dá-la a se ver,

ei-lo então incapaz de todo:
nada sabe dizer de novo.

Só reencontra as coisas ditas
e que ainda diz de Sevilha.

Sua alegria nem sempre alegre
porque há nela dupla febre:

a febre sem patologia
que lhe enfebrece até a gíria,

que tanto informa sua festa
e a alma em chispa detrás dela;

e a outra febre, a da doença,
da pobreza da Macarena,

dos operários sem semana
e dos ciganos de Triana:

a febre antiga e popular
que o mundo um dia há de curar

e nada tem com a febre que arde
no que é Sevilha e suas Carmens.


2

De uma Sevilha tem pudor:
de onde nos balcões tanta flor,

de onde as casas de cor, caiadas
cada ano em cores papagaias,

que fazem cada rua uma festa
que a sevilhana sem modéstia

passeia como em sala sua,
multivestida porém nua,

dessa nudez sob mil refolhos
que só se expressa pelos olhos.

Por ela anda a sevilhana
como andaria qualquer chama,

a chama que reencontro negra
e elétrica, da cabeleira,

chama morena e petulante
dela e da sevilhana andante,

ambas em espiga de cabeça,
num desafio a quem que seja,

e pisando esbeltas no chão,
ambas, num andar de afirmação.


3

Pois não quis viver em Sevilha
que é de onde ela não se sabia,

descrente da antropologia
que lhe nega a genealogia:

mas sevilhana nela toda,
como se naufragada forma

viesse a encalhar por engano
nas praias do Espírito Santo.

Donde o pé atrás contra Sevilha?
Crê que é só bulha, bulerías?

Sevilha é mais da siguiriya
que é a castelhana seguidilla

que o cigano prende no tanque
de seu silêncio, e fez em cante,

e que a cigana faz em dança,
centrada em si como uma planta.

São em Sevilha as glorietas,
essa praças de bolso, feitas

para se ir escutar o tempo
desfiar carretéis de silêncio.


4

Para convencer a sevilhana
surpreendida por estas bandas

quis dar-lhe a ver em assonantes
o que ambas têm de semelhante.

Mas para sua confusão
o que escreveu até então

de Sevilha, de sua mulher,
de suas ruas, de seu ser

(que Sevilha, se há de entender
é toda uma forma de ser),

o que escreveu até então
se revelou premonição:

a sevilhana que é campista
já vem nos poemas de Sevilha,

e vem neles tão antevista
que em Sobrenatural creria

(não fosse ele um homem do Nordeste
onde tal Senhor só aparece

com santas, sádicas esponjas
para enxugar riachos e sombras.)



Fonte: "A educação pela pedra e depois", Editora Nova Fronteira, 1997.
Originalmente publicado em: "Sevilha andando", Editora Nova Fronteira, 1989.

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