Recorda!

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Poema de Cruz e Souza



Quando a onda dos desejos inquietantes,
        Que do peito transborda,
Morrer, enfim, nas amplidões distantes,
        Recorda-te, recorda...

Revive dessa música já finda
        Que nas estrelas dorme.
Volta-te ao mundo sedutor ainda
        Da ilusão multiforme!

Volta, recorda eternamente, volta
        Aos faróis da esperança,
Do sonho estranho as grandes asas solta
        À celeste bonança.

Recorda mágoas, lágrimas e risos
        E soluços e anseios...
Revive dos nevoeiros indecisos
        E dos vãos devaneios.

Revive! Goza! Desolado embora,
        Sorrindo e soluçando,
Erguendo os véus de já passada aurora,
        Recordando e sonhando...

Cada alma tem seu íntimo recato
        Numa estrela perdida
E cada coração intemerato
        Tem na estrela uma vida.

Aplica o ouvido à correnteza fria
        Dos golfões da matéria
E recorda de que lama sombria
        É composta a miséria.

Recorda! Sonha! Nas estrelas erra,
        Beduíno do espaço
Aos sonhos brancos, que não são da Terra,
        Dá, sorrindo, o teu braço...

Dá o teu braço, pelos céus sorrindo
        E recordando parte
E hás de entender os claros céus, sentindo
        Que andas a recordar-te.

Bate à porta dos astros solitários
        Dos eternos fulgores,
Em busca desses mortos visionários,
        Almas de sonhadores.

Ah! volta à infância dos primeiros beijos,
        Dos momentos sidéreos,
Volta à sede dos últimos desejos,
        Dos primeiros mistérios!

Ah! volta aos desenganos primitivos,
        Volta à essência dos anos,
Volta aos espectros tristemente vivos,
        Ah! volta aos desenganos!

Volta aos serenos, flóridos oásis,
        Volta aos hinos profundos,
Volta às eflorescências dos lilases,
        Volta, volta a esses mundos!

Fique na sombra e no silêncio d'alma
        Todo o teu ser dolente,
Para tranqüilo, com ternura e calma,
        Recordar docemente...

Na sombra então e no silêncio denso,
        Como em mágicas plagas,
Faz acender o alampadário imenso
        Das recordações vagas...

Pousa a cabeça, meigamente pousa
        Nesse augusto quebranto
E nem da Terra a mais ligeira coisa
        Te desperte do encanto.

Para o amor, para a dor e para o sonho
        Nas esferas transborda...
E entre um soluço e um segredo risonho
        Recorda-te, recorda...



Fonte: "Faróis", Laemmert & Cia Livraria, 1900.
Originalmente publicado em: "Faróis", Laemmert & Cia Livraria, 1900.

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