Julga
Poema de Gregório de Matos
Tempo, que tudo trasfegas,
Fazendo aos peludos calvos,
E pelos tornar mais alvos,
Até os bigodes lhes esfregas;
Todas as caras congregas,
E a cada uma pões mudas;
Tudo acabas, nada ajudas:
Ao rico pões em pobreza,
Ao pobre dando riqueza,
Só para mim te não mudas.
Tu tens dado em malquerer-me,
Pois vejo que dá em faltar-te,
Tempo, só para mudar-te,
Se é para favorecer-me.
Por conservar-me e manter-me
No meu infeliz estado,
Até em mudar-te hás faltado,
E estás tão constante agora,
Que para minha melhora,
De mudanças te hás mudado.
Tu que esmaltas e prateias
Tanta guedelha dourada,
E tanta face encarnada
Descoras, turbas e afeias:
Que sejas pincel, não creias,
Senão dias já passados;
Mas, se esmaltes prateados
Branqueiam tantos cabelos,
Como branqueiam os pelos,
Não me branqueias cruzados?
Se corres tão apressado,
Como paraste comigo?
Corre outra vez, inimigo,
Que o teu curro é meu sangrado.
Corre para vir mudado,
Não pares por mal de um triste,
Porque, se pobre me viste,
Paraste há tantas auroras,
Se de tão infaustas horas
O teu relógio consiste?
O certo é que és um caco,
Um ladrão da mocidade;
Por isso, nessa cidade
Corre um tempo tão velhaco.
Farinha, açúcar, tabaco,
No teu tempo não se alcança;
E por tua intemperança
Te culpa o Brasil inteiro,
Porque sempre és o primeiro
Móvel de qualquer mudança.
Não há já quem te suporte,
E quem armado te vê
De foice e relógio, crê
Que és o precursor da morte.
Vens adiante de sorte,
E com tão fino artifício,
Que à morte forras o ofício;
Pois ao tempo de morrer,
Não tendo já que fazer,
Perde a Morte o exercício.
Se o tempo consta de dias
Que revolve o céu opaco,
Como tu, tempo velhaco,
Constas de velhacarias?
Não temes que as carestias
Que de ti se hão de escrever
Te darão a aborrecer
Tanto às futuras idades,
Que, ouvindo as tuas maldades,
A cara te hão de torcer?
Se porque penas me dês
Pára, cruel e inumano,
O céu santo e soberano
Te fará mover os pés.
Esse azul móvel que vês
Te fará ser tão corrente,
Que, não parando entre a gente,
Preveja a Bahia inteira
Que hás de correr a carreira
Com pregão de delinquente.
Fonte: "Obra Poética", Tipografia Nacional, 1882.
Originalmente publicado em códices da segunda metade do século XVII.