Lira XVIII (parte II)

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Poema de Thomaz Antônio Gonzaga



Eu, Marília, não fui nem um vaqueiro,
Fui honrado pastor da tua aldeia;
Vestia finas lã e tinha sempre
A minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal e o manso gado;
Nem tenho a que me encoste um só cajado.

Para ter que te dar, é que eu queria
De mor rebanho ainda ser o dono;
Prezava o teu semblante, os teus cabelos,
Ainda muito mais que um grande trono.
Agora que te oferte já não vejo
Além de um puro amor, de um são desejo.

Se o rio levantado me causava,
Levando a sementeira, prejuízo,
Eu alegre ficava apenas via
Na tua breve boca um ar de riso.
Tudo agora perdi; nem tenho o gosto
De ver-te ao menos compassivo o rosto.

Propunha-me a dormir no teu regaço
As quentes horas da comprida sesta,
Escrever teus louvores nos olmeiros,
Toucar-te de papoulas na floresta;
Julgou o justo céu que não convinha
Que a tanto grão subisse a glória minha.

Ah minha bela, se a fortuna volta,
Se o bem, que já perdi, alcanço e provo;
Por essas brancas mãos, por essas faces
Te juro renascer um homem novo;
Romper a nuvem que os meus olhos cerra,
Amar no céu a Jove e a ti na terra.

Fiadas comprarei as ovelhinhas,
Que pagarei dos poucos do meu ganho;
E dentro em pouco tempo nos veremos
Senhores outra vez de um bom rebanho.
Para o contágio lhe não dar, sobeja
Que as afague Marília ou só que as veja.

Se não tivermos lã e peles finas,
Podem mui bem cobrir as carnes nossas
As peles dos cordeiros mal curtidas,
E os panos feitos com as lãs mais grossas.
Mas ao menos será o teu vestido
Por mãos de amor, por minhas mãos cozido.

Nós iremos.pescar na quente sesta
Com canas e com cestos os peixinhos:
Nós iremos caçar nas manhãs frias
Com a vara envisgada os passarinhos.
Para nos divertir faremos quanto
Reputa o varão sábio, honesto e santo.

Nas noites de serão nos sentaremos
Co'os filhos, se os tivermos, à fogueira:
Entre as falsas histórias que contares,
Lhes contarás a minha verdadeira:
Pasmados te ouvirão; eu, entretanto,
Ainda o rosto banharei de pranto.

Quando passarmos juntos pela rua,
Nos mostrarão co'o dedo os mais pastores;
dizendo uns para os outros: "Olha os nossos
Exemplos da desgraça e sãs amores."
Contentes viveremos d'esta sorte,
Até que chegue a um dos dois a morte.



Fonte: "Marília de Dirceu", Irmãos Garnier Editores, 1862.
Originalmente publicado em: "Marília de Dirceu", 1792.

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