Uma evocação de Recife
Poema de João Cabral de Melo Neto
O Recife até os anos quarenta
era como os dedos da aranha
que iam cada dia mais longe;
os dedos: as linhas do bonde.
Ninguém falava do seu bairro
mas desses dedos espalmados
que as linhas de bonde varavam
e a seu lado cristalizavam.
Mora-se na linha do Monteiro,
passado já o Caldeireiro,
depois porém da própria praça
do Monteiro, na Porta d'Água,
mas um pouco antes de Apipucos,
do açude que dá nome ao cujo.
O Recife de então se espalha
aonde o levavam suas garras,
se esgueirando entre as línguas secas
que a maré entre os dedos deixa:
mas que deixa até onde deixa:
ao onde que, ausente das letras,
está presente como mangues
de olhos de água cega, estanques,
que em pesadelo estão presentes
no sono de todo recifense.
Fonte: "A educação pela pedra e depois", Editora Nova Fronteira, 1997.
Originalmente publicado em: "Agrestes", 1985.
Fonte: "A educação pela pedra e depois", Editora Nova Fronteira, 1997.
Originalmente publicado em: "Agrestes", 1985.