O que mais dói na vida

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Poema de Gonçalves Dias



O que mais dói na vida não é ver-se
           Mal pago em beneficio,
Nem ouvir dura voz dos que nos devem
           Agradecidos votos,
Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato,
           Que as devera beijar!

Não! o que mais dói não é do mundo
           A sangrenta calúnia,
Nem ver como s’infama a ação mais nobre,
           Os motivos mais justos,
Nem como se deslustra o melhor feito,
           A mais alta façanha!

Não! o que mais dói não é sentir-se
           As mãos dum ente amado
Nos espasmos da morte resfriadas,
           E os olhos que se turvam,
E os membros que entorpecem pouco e pouco,
           E o rosto que descora!

Não! não é o ouvir daqueles lábios,
           Doces, tristes, compassivas,
Sobre o funéreo leito soluçadas
           As palavras amigas,
Que tanto custa ouvir, que lembram tanto,
           Que não s’esquecem nunca!

Não! não são as queixas amargadas
           No triunfar da morte;
Que, se se apaga a luz da vida escassa,
           Mais viva a luz rutila;
Luz da fé que não morre, luz que espanca
           As trevas do sepulcro.

O que dói, mas de dor que não tem cura,
           O que aflige, o que mata,
Mas de aflição cruel, de morte amara,
           É morrermos em vida
No peito da mulher que idolatramos,
           No coração do amigo!

Amizade e amor! - laço de flores,
           Que prende um breve instante
O ligeiro batel à curva margem
           De terra hospitaleira;
Com tanto amor se enastra, e tão depressa,
           E tão fácil se rompe!

À mais ligeira ondulação dos mares,
           Ao mais ligeiro sopro
Da viração - destrançam-se as grinaldas;
           O baixel se afasta,
Veleja, foge, até que em plaga estranha
           Naufragado soçobre!

Talvez permite Deus que tão depressa
           Estes laços se rompam,
Por que nos pese o mundo, e os seus enganos
           Mais sem custo deixemos:
Sem custo assim a brisa arrasta a planta,
           Que jaz solta na terra!



Fonte: "Poesia completa e prosa escolhida", Editora José Aguilar, 1959.
Originalmente publicado em: "Últimos Cantos", 1851.

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