Redargue
Poema de Gregório de Matos
Que néscio que eu era então,
Quando cuidava o não era!
Mas o tempo, a idade, a era,
Puderam mais que a razão:
Fiei-me na discrição,
E perdi-me, em que me pês,
E agora, dando ao través,
Venho, enfim, a conhecer
Que o tempo veio a fazer
O que a razão nunca fez.
O tempo me tem mostrado
Que, por me não conformar
Com o tempo e com o lugar,
Estou de todo arruinado:
Na política de Estado
Nunca houve princípios certos,
E, posto que homens expertos
Alguns documentos deram,
Tudo o que nisto escreveram
São contingentes acertos.
Muitos, por vias erradas,
Têm acertos mui perfeitos;
Muitos, por meios direitos,
Não dão sem erro as passadas:
Coisas tão disparatadas
Obra-as a sorte importuna,
Que de indignos é coluna.
E, se me há de ser preciso
Lograr fortuna sem siso,
Eu renuncio à fortuna.
Para ter por mim bons fados,
Escuso discretos meios,
Que há muitos burros sem freios
E bem afortunados:
Logo, os que andam bem livrados
Não é própria diligência,
É o Céu, a sua influência,
São forças do fado puras,
Que põem mentidas figuras
No teatro da prudência.
De diques de água cercaram
Esta nossa cidadela,
Todos se molharam nela,
E todos tontos ficaram:
Eu, a quem os Céus livraram
Desta água, fonte de asnia,
Fiquei são da fantasia
Por meu mal, pois nestes tratos,
Entre tantos insensatos,
Por sisudo eu só perdia.
Vinham tontos em manada:
Um simples, outro doudete,
Este me dava um moquete,
Aquele outro uma punhada.
Tá: que sou pessoa honrada
E um homem de entendimento?
Qual honrado ou qual talento!
Foram-me pondo num trapo,
Vi-me tornado um farrapo,
Porque um tolo fará cento.
Considerei logo então
Os baldões que padecia,
Vagarosamente um dia,
Com toda a circunspecção.
Assentei por conclusão
Ser duro de os corrigir
E livrar-me do seu poder,
Dizendo com grande mágoa:
"Se me não molho nesta água,
Mal posso entre estes viver."
Eia! estamos na Bahia,
Onde agrada a adulação,
Onde a verdade é baldão
E a virtude, hipocrisia:
Sigamos esta harmonia
De tão fátua consonância,
E, inda que seja ignorância
Seguir erros conhecidos,
Sejam-me a mim permitidos,
Se em ser besta está a ganância.
Alto, pois, com planta presta,
Me vou ao Dique botar;
Ou me hei de nele afogar,
Ou também hei de ser besta.
Do bico do pé até a testa,
Lavei as carnes e os ossos.
Ei-los vêm com alvoroços,
Todos para mim correndo,
Ei-los me abraçam, dizendo:
"Agora sim que é dos nossos!"
Dei por besta em mais valer:
Um me serve, outro me presta;
Não sou eu de todo besta,
Pois tratei de o parecer.
Assim vim a merecer
Favores e aplausos tantos,
Pelos meus néscios encantos,
Que, enfim e por derradeiro,
Fui galo do seu poleiro
E lhes dava os dias santos.
Já sou na terra bem visto,
Louvado e engrandecido,
Já passei de aborrecido
Ao auge de ser benquisto.
Já entre os grandes me alisto
E amigos são quantos topo.
Estou fábula de Esopo,
Vendo falar animais;
E, falando eu que eles mais,
Bebemos todos num copo.
Seja, pois, a conclusão
Que eu me pus aqui a escrever
O que devia fazer;
Mas que tal faça, isso não.
Decrete a Divina Mão,
Influam malignos fados,
Seja eu, entre os desgraçados,
Exemplo da desventura;
Não culpem minha cordura,
Que eu sei que são meus pecados.
Fonte: "Obra Poética", Tipografia Nacional, 1882.
Originalmente publicado em códices da segunda metade do século XVII.