Maio 1964

Imagem de Ferreira Gullar

Poema de Ferreira Gullar



Na leiteria a tarde se reparte
       em iogurtes, coalhadas, copos
       de leite
       e no espelho meu rosto. São
quatro horas da tarde, em maio.

Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo
a vida
       que é cheia de crianças, de flores
       e mulheres, a vida,
esse direito de estar no mundo,
       ter dois pés e mãos, uma cara
       e a fome de tudo, a esperança.
Esse direito de todos
       que nenhum ato
       institucional ou constitucional
       pode cassar ou legar.

Mas quantos amigos presos!
       quantos em cárceres escuros
       onde a tarde fede a urina e terror.
Há muita famílias sem rumo esta tarde
       nos subúrbios de ferro e gás
onde brinca irremida a infância da classe operária.
       Estou aqui. O espelho
não guardará a marca deste rosto,
       se simplesmente saio do lugar
       ou se morro
       se me matam.
       Estou aqui e não estarei, um dia,
em parte alguma.
       Que importa, pois?
       A luta comum me acende o sangue
       e me bate no peito
       como o coice de uma lembrança.



Fonte: "Coleção Melhores Poemas", Editora Leya, 2012.
Originalmente publicado em: "Dentro da noite veloz", 1975.

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