No mundo há muitas armadilhas

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Poema de Ferreira Gullar



No mundo há muitas armadilhas
        e o que é armadilha pode ser refúgio
        e o que é refúgio pode ser armadilha

Tua janela por exemplo
        aberta para o céu
        e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
        a bater antes de Cabral, antes de Tróia
        (há quatro séculos Tomás Bequimão
        tomou a cidade, criou uma milícia popular
        e depois foi traído, preso, enforcado)

No mundo há muitas armadilhas
        e muitas bocas a te dizer
        que a vida é pouca
        que a vida é louca
        E por que não a Bomba? te perguntam.
        Por que não a Bomba para acabar com tudo, já que a vida é louca?

Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
        que não sabe
        que afoito se entranha à vida e quer
        a vida
        e busca o sol, a bola, fascinado vê
        o avião e indaga e indaga

        A vida é pouca
        a vida é louca
        mas não há senão ela.
        E não te mataste, essa é a verdade.

        Estás preso à vida como numa jaula.
        Estamos todos presos
        nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
        de fora e nos dizer: é azul.
        E já o sabíamos, tanto
        que não te mataste e não vais
        te matar
        e aguentarás até o fim.

        O certo é que nesta jaula há os que têm
        e os que não têm
        há os que têm tanto que sozinhos poderiam
        alimentar a cidade
        e os que não têm nem para o almoço de hoje.

        A estrela mente
        o mar sofisma. De fato,
        o homem está preso à vida e precisa viver
        o homem tem fome
        e precisa comer
        o homem tem filhos
        e precisa criá-los
        Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.



Fonte: "Coleção Melhores Poemas", Editora Leya, 2012.
Originalmente publicado em: "Dentro da noite veloz", 1975.
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